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CIRANDAS PARA UMA PRIMAVERA DE PAZ: O INÉDITO VIÁVEL!

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” (Eduardo Galeano - As Palavras Andantes, 1994)

O horizonte do primeiro dia de primavera, nos campos e montanhas da Serra Catarinense, foi deslumbrante. A visita amorosa das chuvas alvejou as nuvens carregadas das fumaças criminosas e, em sinodalidade amorosa com a formosura da última lua cheia de inverno, decretou o advento do “cio da terra: propícia estação de fecundar o chão”.

O frio daquela noite de outono, no dia 28 de maio, anunciava um inverno bastante rigoroso. No Centro de Convivência municipal, em Bocaina do Sul vivenciamos um primeiro Círculo de Diálogo com agentes públicos das diferentes Secretarias e da Câmara de Vereadores. A intensidade daquele encontro aqueceu nossos corações e nos colocou, pessoas e círculos em movimento, para uma grande Ciranda de Paz. A partir de então, o pequeno grupo de facilitador@s do município, formado de agosto a dezembro de 2023 no curso promovido pelo Núcleo de Justiça Restaurativa de Lages, com o apoio de uma jovem e corajosa vereadora local, iniciou a articulação do I Seminário Municipal de Justiça Restaurativa e Políticas Públicas, realizado no dia 08 de agosto, com a participação de 78 pessoas atuantes nas políticas públicas de saúde, educação e assistência social no município de Bocaina do Sul e de outros municípios vizinhos.

No processo de avaliação do Seminário, dentre tantas conquistas e descobertas compartilhadas, acolhemos a preocupação dos agentes públicos em relação à violência política que se desenhava no horizonte de mais uma campanha eleitoral e as ameaças dessa violência à garantia dos direitos sociais que cada uma das políticas públicas tem a obrigação de assegurar. Esse clamor por justiça e paz nos provocou para a continuidade da ciranda na proposição inédita de Círculos de Diálogo e Construção de Paz com candidat@s ao executivo e legislativo nas eleições municipais do próximo dia 06 de outubro. O Núcleo de Justiça Restaurativa de Lages assumiu o desafio e nós, em Bocaina do Sul, comprometemo-nos em sensibilizar candidat@s, partidos e coordenações de campanha e a própria comunidade para a realização dos Círculos.

Na noite de 19 de setembro, data em que celebramos os 103 anos de nascimento de Paulo Freire, no encerramento do terceiro Círculo, honramos esse grande educador brasileiro, reconhecido mundialmente pelos projetos de alfabetização através dos Círculos de Cultura, onde ninguém sabe mais do que ninguém, mas tod@s compartilham seus saberes e, assim, aprendem e ensinam em cirandas de circularidade e horizontalidade, e entendemos o que ele nomeou com a expressão “inédito viável”, dialogando com a “utopia no horizonte” do não menos honrado escritor uruguaio Eduardo Galeano.

As três noites de Círculos de Diálogo e Construção de Paz, nos dias 16, 17 e 19 de setembro, superaram todas as nossas mais ousadas expectativas. “A paz invadiu o meu coração... A paz fez o mar da revolução” e colocou em relação de reciprocidade, escuta, cumplicidade e respeito 48 pessoas: idosas e crianças, adultas e jovens; movidas por sentimentos de curiosidade e surpresa; comprometidas com a democracia fragilizada nos últimos tempos; interessadas em aprender e ensinar; necessitadas de contar suas próprias histórias e encontrar ouvidos atentos, sigilosos e sem julgamentos; conectadas com as perguntas norteadoras (quicá, um dia, suleadoras!); entusiasmadas com o coração e a girafa que passavam de mão em mão, desejosas em contribuir com o desenvolvimento do município; responsabilizadas com uma campanha honesta e pacífica, comprometidas em re-encantar a política, ainda que misturando “a dor e a alegria” com “essa estranha mania de ter fé na vida”.

Quem acompanha o processo dos Círculos sabe que um de nossos combinados é o sigilo. Portanto, não faremos nenhum comentário sobre as narrativas que compartilhamos nesses dias. No entanto, não há como deixar de “anunciar sobre os telhados” a potência que vivenciamos e manifestar nossa gratidão a Carol, Alexandre, Dani e Pinduca que, muito mais que guardiões ou facilitador@s, corporificaram entre nós o que a profecia de Isaías anunciou: “Como são belos nas montanhas os pés daqueles que anunciam boas-novas, que proclamam a paz, que trazem boas notícias, que proclamam salvação” (Is, 52,7). Com o coração agradecido, presenteamos esses amig@s de Bocaina do Sul com uma pequena e frágil muda de lavanda. Algumas pessoas que cultivam essa planta em seus jardins, aqui na região serrana de Santa Catarina, me ensinaram que a lavanda se adapta em ambientes bastante hostis e, quanto maior for a adversidade, tanto maior será o perfume suave que ela exala de suas folhas e flores. São esses “inéditos viáveis”, em gentes e gestos, que precisamos seguir cultivando e cirandando para fazer florescer no horizonte uma Primavera de Paz.

Para além da vivência dos Círculos o que se vê nas comunidades de Bocaina do Sul nos últimos meses e o que se espera para os próximos tempos é uma grande movimentação de esperança. A campanha eleitoral nesse ano, está sendo acompanhada de uma “campanha de or-ação pela paz nas eleições” mobilizando inúmeras pessoas, grupos e famílias que diária e franciscanamente recitam: “onde houver ódio, que eu leve o amor; onde houver ofensa, que eu leve o perdão; onde houver discórdia, que eu leve a união, onde houver dúvida, que eu leve a fé; onde houver erro, que eu leve a verdade; onde houver desespero, que eu leve a esperança; onde houver tristeza, que eu leve a alegria; onde houver trevas que eu leve a luz” . Além disso, é evidente uma espécie de “controle social” da população em relação às atitudes d@s candidat@s, por conta deste “processo restaurativo” que se instaurou no município e que será marcado, em um futuro próximo, com a criação do Dia Municipal da Paz e da Justiça.

Ontem, alguém me indagou na rua sobre os Círculos realizados: “Você está otimista?” Surpreso com a pergunta, pensei por um instante e decidi surpreender o interlocutor: “Não!” E me expliquei chamando-o para refletir sobre o contexto de violência política que se institucionalizou no Brasil com maior gravidade nos últimos dez anos. Disse-lhe que Bocaina do Sul não é uma “bolha” e que os Círculos de Diálogo e Construção de Paz não isentam seus participantes das mazelas, truculências e corrupções ainda muito presentes nas campanhas eleitorais, lamentavelmente. “Sou pessimista”, afirmei, “Mas, um pessimista esperançoso!” recordando as palavras de outro grande educador, Rubem Alves: “Hoje não há razões para otimismo. Hoje só é possível ter esperança. Esperança é o oposto do otimismo. “Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração.” Camus sabia o que era esperança. Suas palavras: “E no meio do inverno eu descobri que dentro de mim havia um verão invencível…” Otimismo é alegria “por causa de”: coisa humana, natural. Esperança é alegria “a despeito de”: coisa divina. O otimismo tem suas raízes no tempo. A esperança tem suas raízes na eternidade. O otimismo se alimenta de grandes coisas. Sem elas, ele morre. A esperança se alimenta de pequenas coisas. Nas pequenas coisas ela floresce…”

O olhar surpreso de ambos deu lugar a um sorriso largo e um abraço apertado que compartilho com tod@s vocês que me acompanharam na leitura até aqui. Somos gente de travessia, andarilh@s da esperança. Até agora, pouco ou nada fizemos. Ainda temos um longo caminho a percorrer... Caminhemos junt@s, em perspectiva sinodal. Cirandemos, esperançando uma Primavera de Paz. O inédito viável, a utopia está no horizonte e o horizonte está no olhar de cada um e de cada uma de nós: “Quando morrer a utopia, toda canção, toda paixão, toda razão morrerão. Quando morrer a utopia, terra e céu tombarão. Quem cuidará das estrelas, quem velará pelas flores, no coração, em nosso chão, quando morrer a utopia? Por isso é que sonhamos, por isso é que arvoramos, com a canção, com a paixão, nossa utopia, irmãos!” (Pedro Casaldáliga)

               pe. Roberto Moreira 

Bocaina do Sul, 23 de setembro de 2024

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