Notícia
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ANDARILHAGENS DE A-CORDAR
“Eu morreria feliz se eu visse o Brasil cheio, em seu tempo histórico, de marchas.
Marcha dos que não têm escola, marcha dos reprovados,
marcha dos que querem amar e não podem,
marcha dos que se recusam a uma obediência servil,
marcha dos que se rebelam,
marcha dos que querem ser e estão proibidos de ser...
As marchas são andarilhagens históricas pelo mundo.”
(Paulo Freire)
Car@s Amig@s,
Nas primeiras horas da madrugada, do dia em que celebramos os 102 anos do nascimento de Paulo Freire, acordei com o mesmo entusiasmo que conduziu os nossos pés pelos caminhos da Travessia dos dias 16 e 17 de setembro: A-cordar a primavera. Não trata-se apenas de despertar do sono mas, simplesmente, ter um só coração. E foi isso que vivenciamos desde os primeiros acordes: “Tempo de Travessia, seguimos em caminhada. Do pouso de São João Maria, prá acordar a primavera junt@s nesta jornada!” O terço rezado com reverência no antigo “cemitério de anjos”, a mesa farta de partilha, preparada pela comunidade Aparecida do Areião, os abraços dos encontros e os sorrisos dos re-encontros, já anunciavam o que estaria por vir: um tempo forte de a-cordar.
Seguimos para o vale do Rio Canoas, onde fomos recebidos na Roda de Conversa e de Chimarrão para construir nosso Filtro dos Sonhos, trançando as varas de vime com os fios coloridos de nossos desejos, juntando histórias de árvores e teias dos povos originários, compartilhando nossos e nomeando com nossos sonhos e pesadelos, tecendo redes de cura e proteção, contemplando as pequenas mudas da Árvore da Terra do Povo Livre misturadas às sementes crioulas da terra do Karu. No início da noite, a comunidade Santo Antônio nos convidou à celebração e nos acolheu generosamente em suas famílias.
No amanhecer ensolarado de domingo, saímos de Campinas caminhando e cantando: “Para mudar o mundo, o amor de todo mundo... O amor de todo mundo, para mudar o mundo!” Éramos gentes diversas, como nos auto-declaramos desde a primeira Travessia, em novembro de 2021, quando percorremos os 88 quilômetros de São Francisco a Santa Clara. Em comum, a espiritualidade do caminho rumo às periferias e o gosto de caminhar junt@s, como fizemos em agosto de 2022, na Travessia do Bom Jesus. Agora, nossa missão de a-cordar a primavera tinha cerca de 25 quilômetros entre a subida da Serra dos Palhanos e a descida da Serra dos Macedos, até chegar à comunidade Cristo Rei, em Piurras. À nossa frente a bandeira da paz, ícone das lutas dos povos andinos e de todas as pessoas que marcham pelo direito de ser.
Existe alguém além de nós, foi o que nos ensinou Valéria, a partir das histórias de origem da Wiphala, nas terras do povo Kuna, o povo da Abya Ayala que ainda hoje habita a região da Serra Nevada, no norte da Colômbia. Existem nós que sustentam os galhos das inúmeras araucárias que encontramos pelo caminho, em pé de testemunho. Desses nós, fomos agraciados com uma
pequena cruz, onde o amor rima com dor. Com Luna e Nicole, cantamos a Vitória do povo contra todas as cruzes e dores renovando nossa fé em Deus e na Vida, onde o Amor sempre terá a última Palavra!
Na subida da serra, apoiados pelo cajado de um Deus bondoso, compassivo e carinhoso e pela cumplicidade dos que caminhavam conosco, a-cordamos para um antigo e sempre novo sentido do perdão. Para além da doutrina da culpa e da reparação, para além da tabuada do setenta vezes sete, “per”-“doar”, significa “doar muito”, “entregar tudo”. Longe da lógica da acumulação, a única fortuna do perdão é a partilha de tudo o que somos e temos, sabemos, podemos e sonhamos. Assim, acolhemos aquela flor do campo que per-doou seu perfume quando passamos, a árvore que fez o mesmo com sua sombra, a fonte que não hesitou em entregar-se totalmente à nossa sede. Assim também as crianças que com a professora Zeni, per-doaram seus desenhos para embalar as sementes igualmente per-doadas pelas mulheres camponesas e guardiãs das sementes crioulas nas roças e assentamentos da reforma agrária.
E o que dizer das ramas de aipim cultivadas e per-doadas por Davi, Vanei e Mara, como se fossem o “obolo da viúva” (cf.Mc 12,41-44). Da mesma forma, a parada para o almoço na casa do Lindomar e da Ketlin, as alfaces da Inez, a prosa saudosa de Alzira e Lica, os pirulitos e balas compartilhadas pelas crianças... Todos, igual e plenamente, sacramentos de per-dão.
Os 30 graus das 13 horas nos convidavam para seguir a Travessia, agora percorrendo as trilhas de cima da serra, onde nos encontramos com as vertentes de dois rios, nascendo do ventre da Terra: o Rio Campinas, que nos acompanhara na subida e segue em direção do amanhecer para juntar-se ao Canoas no vale que acolheu migrantes de outras terras e o Rio Piurras, que desceria conosco para o norte, saciando nossa sede, refrescando nossos pés e irrigando as terras do povo caboclo da Serra dos Macedos e das Piurras, para depois encontrar o irmão de berço no rio Canoas, um pouco adiante. O vento, andarilho das Terras Altas, nos trouxe notícias de Geraldo e despertou a memória agradecida de Jô e Milau, e de todos nós que aprendemos a esperançar com ele.
A descida nos surpreendeu com o cansaço e a necessidade de buscar o apoio, dos cajados e d@s companheir@s. Mais uma vez, precisamos a-cordar para a escrevivência do perdão. A água gelada e as bolos da comunidade que nos esperava no meio do caminho, o per-doar do torresmo da Èdia, do violãozinho do Murilo junto à voz e ao violão do Fabian, o abraço per-doado da Zulma e do Antônio na beira da estrada, o patinho de estimação do Davi e do Tiago, as forças per-doadas até o limite dos corpos que pediram carona, a teimosia per-doada de Sadiana e Josué, Andriele e Daniel que seguiram até o fim e o soninho per-doado da Luna que os acompanhou, tudo foi celebrado com alegria na comunidade que se reúne ao redor de Cristo Rei e partilha a mesa farta de café com mistura como a antecipação do Reino anunciado por Ele. Nela nos alegramos e fortalecemos para retornar às nossas andarilhagens históricas e cotidianas e, ainda que estivesse anoitecendo, nos despedimos revestid@s de amanhecer.
As palavras de Paulo Freire, compartilhando seu feliz esperançar, alguns dias antes de sua travessia pascal, em maio de 1997, nos entusiasmam a seguir marchando, travessiando, primaverando... No Tempo da Criação 2023, Francisco nos convida a viver a insistir na ética do cuidado com nossa Casa Comum e na justiça sócio- ambiental com todas as vítimas da exclusão e da crueldade humana, inspirados na profecia de Amós: “Eu quero, isto sim, é ver brotar o direito como água e correr a justiça como riacho que nunca seca.” (cf. Am 5,24). Hermes, já no colo de Rosina, nos inspirou a seguir nas travessias cotidianas com a poesia de Mário Quintana: “Os rios são caminhos mais antigos que a redondeza da terra.
Eles descem horizontes, seguem sozinhos no ar. E a bela asa em pleno vôo, entre o partir e o chegar, sem se importar com fronteiras. Mas como se há de parar?” Sem dúvida, o cuidado e a proximidade, a justiça e paz, a profecia e a poesia salvarão o mundo. E, se permanecermos a-cordad@s e per-doad@s, em nossas Travessias anuais e cotidianas, podemos sim juntar “o amor de todo mundo, para mudar o mundo!”
pe. José Roberto Moreira
Bocaina do Sul, 19 de setembro de 2023.
Paulo Freire, 102 anos, presente na Caminhada!