Diocese de Lages

Notícia


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Pedro, Pedra, Padre

“_Não deves escrever uma linha sequer que não seja sobre a obsessão que te persegue_”
(Ernesto Sábato, romancista argentino, citado em Nicarágua: Combate e Profecia, livro de Pedro Casaldáliga)

Caro Pedro,

Desculpe a demora em reagir à notícia de sua morte. Resisti à obsessão de escrever estas linhas nas últimas horas que, para mim, foram horas de amarga orfandade, de “silêncio pela dor”, de “noite escura”... Hoje, ao amanhecer, as azaleias iniciaram sua teimosa floração aqui no pátio da igreja de Bocaina... Primaverando, ainda que seja inverno. Elas, as azaleias, me convenceram a retirar as “vestes de luto” e pro-seguir, com minhas frágeis forças, nas suas lutas e suas causas que, como você mesmo nos disse, são “_maiores que a sua vida_”. Enquanto escrevo, você está fazendo sua Páscoa-passagem pelo Santuário dos Mártires da Caminhada, em Ribeirão Cascalheira, a caminho da amada São Félix do Araguaia, onde será semeado junto aos indígenas e peões anônimos no cemitério dos Karajás, às margens do Rio que o conduzirá no cortejo das garças ao abraço do (e)Terno mar da Graça de Deus.

Antes de conhecê-lo pessoalmente, conheci sua profecia e sua poesia. Você foi-me apresentado por um outro Pedro, também poeta. Na década de oitenta, eu era estudante e não me conformava em “navegar no oceano do espírito”. Preferia beber a “Água de Rebelião” (1975) de Pedro Tierra, onde aprendi decor: “_Por isso, é fácil ser censor e difícil ser poeta. Porque a poesia é palavra armada de profecia, de rebeldia. A poesia é a vocação de não calar_”. Naqueles tempos, ouvindo Belchior, eu me também me sentia “_apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso e vindo do interior_”, e tentava sobreviver aos doutrinamentos e dogmatismos da formação seminarística lendo e escrevendo poemas, caminhando, cantando e seguindo a canção: “_sons, palavras são navalhas... e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém_”. Meu coração de estudante deixava-se aquecer por estas palavras da poesia e da profecia e, na tentativa de ressignificar as narrativas da filosofia e da teologia, viajava nos seus escritos e no seu testemunho: “_Me chamarão subversivo. Eu lhes direi: eu sou. Por meu Povo em luta, vivo. Com meu Povo em marcha, vou. Tenho fé de guerrilheiro e amor de revolução. E entre Evangelho e canção sofro e digo o que quero. Se escandalizo, primeiro queimei o próprio coração ao fogo desta Paixão, cruz de Seu mesmo Madeiro. Incito à subversão contra o Poder e o Dinheiro. Quero subverter a Lei que perverte ao Povo em grei e ao Governo em carniceiro. (Meu Pastor se faz Cordeiro. Servidor se fez meu Rei.) Creio na Internacional das frontes alevantadas, da voz de igual a igual e das mãos enlaçadas... E chamo a Ordem de mal, e ao Progresso de mentira. Tenho menos paz que ira. Tenho mais amor que paz. Creio na foice e no feixe destas espigas caídas: uma Morte e tantas vidas! Creio nesta foice que avança – sob este sol sem disfarce e na comum Esperança – tão encurvada e tenaz_!” (Canção da Foice e do Feixe, 1978).

O tempo passou e, no dia em que completei 27 anos, recebi o presente de vê-lo de longe na Celebração dos Mártires, durante o 8º Encontro Intereclesial das CEBs, em Santa Maria (RS). Depois, na memória deste primeiro encontro pessoal com você, encontrei-o mais de uma centena de vezes no filme “O Anel de Tucum”. Seus textos e suas falas preenchiam de sentido o meu ministério e o caminho compartilhado com outras pessoas que buscavam encontrar Jesus no rosto das pessoas empobrecidas. Em junho de 2010, batizei com o nome Pedro meu sobrinho-afilhado mais novo. Na Romaria dos Mártires da Caminhada, em Ribeirão Cascalheira, em julho de 2016, mais uma vez tive a graça de vê-lo de longe. E não ousei me aproximar por respeito às pessoas que cuidavam de você com tanto zelo e dedicação. Em 2018, percorrendo os caminhos de Oscar Romero, em El Salvador, recebi seu livro “El Vuelo del Quetzal” das mãos de Mariella e Rutílio, testemunhas do seu compromisso com o povo martirizado da América Central. Em janeiro de 2019, iniciei minha participação na Escola de Teologia do Araguaia e, num dia de chuva e lama, visitamos sua casa. Com Moema, Soave, Fábio e Mercedes, tive a graça de, finalmente, vê-lo de perto. Um ano depois, no dia 12 de janeiro de 2020, por volta das quatro horas da tarde, com Elis Carlos, visitei-o pela última vez e, reverente, inclinei-me diante de sua presença silenciosa e frágil, pedi sua benção e beijei seu “anel episcopal”. Em toda a minha vida, foi a primeira vez que beijei um anel de bispo. E o fiz, porque o anel era de tucum e você era o bispo!

O dia 08 de agosto amanheceu triste para mim, com a notícia da morte do pai de um companheiro de 41 anos de caminhada na diocese de Lages, Hermes. Uma das 100 mil vítimas da COVID 19 no Brasil que nos convidavam ao luto e a luta. Naquele dia, nas lutas junto ao povo da rua da cidade de Lages, com Sula, Raquel e Lemos estávamos fazendo a mudança da cozinha onde preparamos todos os domingos a refeição para partilhar com as pessoas em situação de rua. A paróquia que nos acolheu por nove anos e quatro meses havia solicitado a desocupação do espaço e, provisoriamente (como é a vida de na rua!), fomos acolhidos na sede da Cáritas Diocesana. A convivência com o povo da rua e a graça de a cada domingo, o Dia do Senhor, “tocar o corpo de Jesus na carne ferida dos pobres”, como nos exorta Francisco, é um privilégio que penso não merecer. No entanto, é uma tentativa de traduzir, nas terras do Karú, a “pobreza evangélica” como você escreveu com seu testemunho nas terras do Araguaia: “_Não ter nada. Não levar nada. Não poder nada. Não pedir nada. E, de passagem, não matar nada; não calar nada. Somente o Evangelho, como uma faca afiada. E o pranto e o riso no olhar. E a mão estendida e apertada. E a vida, a cavalo, dada. E este sol e estes rios e esta terra comprada, como testemunhas da Revolução já instalada. E mais nada_!”

A nota do seu falecimento nos encontrou fragilizados, entre potes reciclados, panelas emprestadas, comidas e roupas recém doadas... E a confirmação de que quem segue Jesus e o seu evangelho, não pode ter a pretensão de ter “um lugar para repousar a cabeça” (Mt 8,20). Depois, permanecemos ali, Sula e eu, fazendo memória da Romaria dos Mártires de 2016 e compartilhando lágrimas. Mas estávamos teimosamente em pé, assim como aprendemos dos seus 92 anos de vida e na “profecia extrema” da sua morte, exilado às pressas de sua Terra e do seu Povo: “_Eu morrerei de pé como as árvores. Me matarão de pé. O sol, como testemunha maior, porá seu lacre sobre meu corpo duplamente ungido. E os rios e o mar serão caminho de todos os meus desejos, enquanto a selva amada sacudirá, de júbilo, suas cúpulas. Eu direi a minhas palavras: - Não mentia ao gritar-vos. Deus dirá a meus amigos: - Certifico que viveu com vocês esperando este dia. De golpe com a morte, minha vida se fará verdade. Por fim terei amado!_”

No anoitecer daquele dia de sábado, acompanhando com Ana Karla o cortejo fúnebre do pai do Hermes, tendo uma nuvem de estrelas como testemunhas, lembrei que quando chegar o nosso crepúsculo, seremos “julgados no Amor” e poderemos nos apresentar diante d´Ele com as mãos vazias, desde que o nosso coração se abra “_cheio de nomes_”. Por isso, mais uma vez agradeci a graça de ter conhecido sua profecia e sua poesia, tê-lo visto de longe e tê-lo tocado de perto, ter me inclinado diante do teu corpo frágil e silencioso, poder beijar-lhe o anel e chamá-lo simplesmente: Pedro, Pedra, Padre... Padre dos pobres, Pedra do Reino, Pedro do Araguaia... Presente em (minha) nossa Caminhada!

*pe. Roberto Moreira - Bocaina do Sul, SC, 10 de agosto de 2020*

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